sábado, 24 de março de 2012

Possuído pelo Banqueiro



Compro os jornais e o tabaco sempre no mesmo sitio: no quiosque da avenida Mota Pinto junto á agência de seguros com caixa multibanco.

     Fotografia por: Alexandre Afonso Gonçalves
 Amiúde, encontra-se ali aquele homem sentado no exterior, com os olhos fixos ora na caixa Multibanco, ora na seguradora, sem pedir nada a ninguém. A minha natural timidez resistiu estoicamente durante semanas á curiosidade, mas esta acabou impondo-se:
- O senhor, digo, ao abordar o individuo, desculpe, mas está esperando alguém ou tem falta de alguma
   coisa?
Ele olha-me de soslaio, sem mexer um sobrolho, aceitando com a ponta dos dedos o cigarro que lhe estendo .
- Alguma coisa vai mal? pergunto, enquanto lhe dou lume com o isqueiro, posição que, não obstante
   os críticos do tabaco, aproxima mais as pessoas.
- Sim! Estou possuído, responde sucintamente.
- Possuído? Oh, homem pelos tempos que correm....
- Precisamente, pelos tempos que correm, aquiesça. Os tempos correm a favor deles!.
- Deles quem?, tento perceber.
- Dos banqueiros, claro está! Porque julga que o tempo passa tão depressa? É por causa dos juros, ainda
   não percebeu? São os dias curtíssimos, as semanas que fogem, os meses que galopam, e eles aproveitam.
- Ah, digo balançando o queixo, sem saber que responder a isto. E o senhor está possuído pelo tempo, se
   percebi...
- Não, não percebeu! Estou possuído pelo banqueiro!
- Como assim?
- Tudo começou quando assinei aquela letra. Paguei, paguei, e afinal parece que nunca está paga. Aquele
   papel é na realidade a venda da alma; mas as pessoas não sabem.
- E então ficou possuído?
- De inicio, apenas rondava a minha casa. Depois começou a poisar no ramo mais alto do pinheiro, abrindo
   e fechando os braços como se quisesse voar. Mais tarde, começou a povoar os meus sonhos, e como
   os tempos correm com juros, finalmente fez falir a empresa onde eu trabalhava.
- E o senhor, o que fez? Como se defendeu?
- Fui falar com o padre!
- Para?...
- Para me exorcizar, naturalmente.
- Conseguiu?
- O padre é boa pessoa, mas explicou que um banqueiro não é um demónio qualquer. Tem apoios no
   Estado e até no Vaticano.
- Não compreendo o que você  faz aqui; há semanas que o observo...
- Sabia que o banqueiro também é dono da seguradora que está à nossa frente? Ele vai sair daquela caixa
   multibanco e entrar imediatamente na porta ao lado, para assinar um seguro de vida.
- Os banqueiros precisam de seguro de vida?
- Porque pensa que eles criaram as seguradoras? Para se assegurarem, não percebe?
- Bem, eu até tenho o seguro do carro naquela agência.
- Não percebe mesmo! Os nossos seguros financiam os deles próprios; e no final, só servem mesmo para
   eles se assegurarem de tudo.
- Não respondeu à pergunta: para que precisa um banqueiro de seguro de vida?
- Porque é a única coisa que ele tem a perder, objecta, tirando um pau muito afiado debaixo do casaco.
   Está a ver? Isto é o que se usa para matar demónios e vampiros.
- Mas, se ele perde a vida, para que precisa de seguro, insisto.
- Um banqueiro pretende ficar a ganhar mesmo na morte. Por isso tenho de o interceptar antes dele entrar
   na seguradora.
Como me preparava para ir embora, tirei mais um cigarro para mim e ofereci-lhe outro.
- Só mais uma coisa: suponho que ficou sem nada!...
- Não senhor! Isso é o que ele realmente pretende, mas apenas levou a riqueza exterior. A outra, ele desconhece, nem suspeita que existe.

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