quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A Troca



                                         
                                                             Golconde de René Magritte

O corpo necessita repouso. A cabeça precisa d’outros lugares para além daqueles onde o meu corpo cansou o dia; vou aliviar o tempo, dormir, e finalmente deixar o espirito livre de assujeições fisicas: direi que vou sonhar por facilidade ou por hábito de expressão; ausento-me para o lado de lá. Para trás deixo o ligeiro sussurar laringico, as voltas animicas do ácido gástrico no estomago, o doce calor do corpo da mulher que me envolveu a alma.
  Embora sem os constrangimentos daquele que deixei inerte na cama, tenho a impressão de continuar habitante do meu corpo fisico. Velhos hábitos; a mente não se sabe imaterial. Como sempre, tudo, absolutamente tudo, se torna possivel. Posso saltar através das janelas do metro em andamento, me valer da brisa para flutuar sobre um abismo sem fundo troçando  do orvalho que me atravessa á medida que me deixo vagarosamente empurrar para a praia que se conforma aos meus anseios. Sou livre! Vivo aventuras fabulosas, visito amigos cujo rosto transformo como me apetece, troco personagens do passado por outros que por sua vez reinvento, reescrevo os futuros ao sabor do tempo que domino, e quando vindo de fora, algo me incomoda, até me invento sonhos dentro do meu sonho, voltando a transcender o”lado de cá”, aquele que ficou detrás.
  Certa vez pretendi viajar sem corpo. Queria ver como era na encosta da terra, no espaço fronteiriço entre o mundo e o nada. Viajar sem corpo não é a mesma coisa que se esvazar de si, pois não havendo interior de nós mesmo nada há para esvazar; o exercicio consiste simplesmente em abdicar de semblante corpório e se concentrar apenas no objetivo: ir á orla da terra. De inicio nada fácil: ainda não me habituei a mim mesmo, nem imagino que energia me propulsará e, não menos importante, não sei dirigir a minha vontade. Subir pela noite acima, num breu de céu que estrela nenhuma consegue furar, supõe se desfazer de tudo, se despojar totalmente de referencias, de  anterioridades contidas na nossa memória. Finalmente, começo a voar. Com medo. Mas o medo que me impede de subir, forma uma espessa nuvem que não se deixa atravessar; fico por ali, num voo pequeno e sem alturas, a nuvem baixinha como horizonte máximo. Tenho de mudar o propósito: vou abandonar a noção de experiencia, não se trata aqui de uma viagem de turismo motivada pela curiosidade. Tão pouco pretendo meramente vencer os meus medos. Os medos fui eu quem os criou, os coloquei dentro de mim, logo bastará os apagar, nem se justificam por si mesmos. Novamente
o despojo, a pura ausencia de mim, e a consciencia.  Vou como vão as centelhas do brazeiro, estalando de alegria, impelidas pelo ar quente, revirevoltando, iluminando a desatenta densidade do ar e da noite,  me deixo subir cada vez mais. Nada de fisico, nada de moléculas nem de átomos nada de nada que friccione nos impetos que me compelem. Velocidade e facilidade de movimentos estonteantes, extasiantes. Aqui e ali, outras centelhas se deslocam fugazmente, me crepitam boas vindas num brilhosinho intrigado. Algumas ficam ali quietinhas, quiçá para que “os de cá” as admirem, mas outras, irrequietas se lançam para baixo desaparecendo num piscar de olhos; por isso lhes chamam cadentes, mas a verdade é que gostam de brincar. Quando me aproximei de uma delas, logo soube que o seu calor vem de dentro, daquela energia que brilha porque brilha e não depende de nenhum artificio exogeno nem é extinguivel pelo tempo. Toda a comunidade partilha e enriquece a orla, comunga do espaço e supera o vazio. Não se juntam muito porque a individualidade de cada uma a tornou única, mas se frequentam o bastante para se confortarem pela simples presença da outra. Tambem as distingue o sonho, pois cada uma provem de seu. Como não se sonha em simultaneo, há uma grande variedade de centelhas que partem, enquanto outras vão chegando sob a saudação das que restam. O lado aleatório dos sonhos tão pouco permitiria que se marcasse encontros no firmamento. De qualquer dos modos aqui não há tempo para contar descontar ou medir. Nem este espaço se submitiria a medidas, nem este lugar tem sitio nomável, não é como marcar encontro na esquina da rua tal com a avenida tal.
Pretendo agora reentrar no mundo de cá. Volto com vontade de permanecer mais um pouquinho, mas como agora sei voar poderei regressar ao firmamento sempre que me apetecer. Antecipo aquele doce torpor que o meu corpo disfrutará ao acordar de um sonho tão agradável, e se um pouco deste permanecer nas palpebras que se abrirão ao dia, poderei ainda sonhar acordado. Só há um problema:  onde está o meu corpo? Adormeci nesta cama com a minha mulher, e agora encontro outra mulher a seu lado em vez de mim. Perdi o corpo. 

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